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Blog literário criado em 29/08/2008, na cidade de Blumenau-SC.


30 de out. de 2010

Eu e o javali – o duelo *

Dizem os especialistas que nossos medos são heranças de nossos ancestrais. Coisas do tempo em que para garantir nossa sobrevivência, entrávamos em luta contra nossas presas.

Tudo bem, o tempo passou e o homem firmou sua posição no topo da cadeia alimentar. Não precisamos mais nos aventurar na natureza, tudo está embalado no supermercado. É só pegar e pagar.

Porém, somos eternos insatisfeitos e buscamos um aprimoramento constante, o que me levou ao curso de gastronomia. Não emprego mais minhas energias na caçada, mas sim na arte de melhor preparar a besta.

Tudo ia bem, até que um dia (sempre tem o tal do dia) fui encarregado de acompanhar uma chefa (chef) de renome nacional em um evento gastronômico. Por acompanhamento, entenda-se o serviço pesado. Tudo era alegria, creio que era semelhante ao que acontecia na época do Renascimento, quando aos aprendizes era dado o direito de acompanhar um dos grandes mestres, alguém como um Michelangelo, entenderam?

A ficha ainda não tinha caído. Eu não estava conseguindo ler os sinais, algo terrível estava por vir, representado por uma besta-fera, o javali. Ao chegarmos à cozinha, minha mestra gentilmente apontou-me para algo disforme dentro de um recipiente e disse: “preciso dele cortado em cubos de 2 cm”.

Paramentei-me, adequadamente, com o jaleco de chef, avental transpassado e lenço (bem ao estilo pirata). Abri meu estojo e retirei as facas. Não, eu ainda não conseguia ler os sinais. Estava totalmente cego. Com a firmeza de um guerreiro, decidido que estava, lancei-me na direção do meu objetivo e agora sim, a ficha caiu, violentamente. Era um pernil de javali. Inteiro e imponente pernil de javali esperando para ser reduzido a cubos de 2 cm. Antes, porém, era preciso desossá-lo (dentro da técnica). Agora sim, o drama estava materializado.

Eu, que até aquele momento havia desossado apenas e tão somente uma insignificante cocha de galinha, me vi diante do maior de todos os desafios. Ouvia, na minha mente, o texto de abertura da série de TV “Jornada nas estrelas”: “indo audaciosamente aonde nenhum homem jamais esteve”. Esse era o tamanho do desafio que tinha pela frente.

Para minha sorte, o pernil não tinha vida, mesmo assim, tenho que admitir, levei uma surra.

Só que a vitória final foi minha. Reduzi aquele antes imponente pernil de javali a ridículos cubos de carne de 2 cm. Vencido este obstáculo, que fiz de tudo para que a mestra não percebesse minha total falta de habilidade, levantei a cabeça, enchi o peito e com a sutileza de uma horda de javalis em deslocamento, fiz-me ser notado. O “gran finale” se aproximava, bastava transferir os irrelevantes cubos de carne para o recipiente em que seriam temperados e minha missão estaria brilhantemente concluída.

Moleza, para quem já havia feito a parte mais difícil, pensei eu. Mas, eis que o verdadeiro desastre se concretizou. Juro, caro leitor, que aqueles cubos ganharam vida própria, com alguns deles saltando diretamente para o chão, quase atingindo os pés de minha mestra. Não sei dizer ao certo quantos deles, pois sumiram em desabalada carreira. Os mais atrevidos, antes de sumirem por debaixo das bancadas, viraram-se para mim e, tal qual crianças mal educadas, fizeram mesuras, mostrando-me a língua, antes de sumirem por debaixo das bancadas.

Agora, os seguranças estão se recusando a estender suas rondas aos domínios do laboratório de gastronomia da faculdade, pois dizem que é possível ouvir, em certas noites, o som furioso dos javalis em busca de vingança.

Paulo Roberto Bornhofen

* Texto publicado no site Temperando a Vida com Ana Toscano da Escola de Gastronomia de Brasília.