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Blog literário criado em 29/08/2008, na cidade de Blumenau-SC.


4 de dez. de 2008

Três formas de terror

O cenário estava se armando. Quase quatro meses de chuvas. O solo estava encharcado, o rio, o famoso Itajaí-Açu, ganhava volume e tentava fugir de sua calha. O final de semana apenas começara, era sábado. Pela manhã, fui participar da Conferência Municipal de Cultura. Em meio a discussões sobre a cultura, um único assunto ganhava unanimidade, a chuva.

Quando voltei, no período da tarde, para o encerramento dos trabalhos, fui informado de que a conferência estava suspensa. O prefeito havia decretado estado de emergência. Voltei para casa e no caminho pude notar que as pessoas andavam apressadas, preocupadas. Cheguei a casa e fui deitar.

O barulho da chuva, que caía de forma torrencial, acordou-me. Fui até a cozinha e comecei a saborear uma castanha, quando pela janela da área de serviço notei o trânsito parado e sobre a pista da estrada havia uma lâmina de água barrenta, vermelha. A cidade começava a sangrar e eu não percebera. Fui até a sala, para olhar pela sacada, quando o trânsito parado na via que sai do Parque Vila Germânica chamou minha atenção. Quando cheguei à sacada a surpresa chocou. A rua em frente ao meu condomínio estava tomada pelas águas. Os carros passavam de forma cuidadosa. A água começava tomar a entrada do condomínio.

De súbito, corri e acordei minha esposa. Liguei para o COPOM para saber da situação e fui informado de que o Comandante do Batalhão estava presente. Liguei para ele e ouvi a sentença: “o plano de chamada está sendo ativado e és o primeiro a ser chamado!”. Já havia passado por esta situação antes, em meus 24 anos de serviço policial militar, dos quais 90% servidos em Blumenau; era a minha 5ª enchente.
Rapidamente preparei uma mochila, com alguns itens básicos, como o material de higiene, meias e cuecas. O fardamento eu guardo no quartel. Moro perto do Quartel do meu Batalhão e, pela experiência, sabia que não devia ir de carro. O Quartel pega água e sempre que Blumenau sofre com uma enchente, a casa da Polícia Militar é uma das primeiras a ser atingida. Não conseguia encontrar caminho para o quartel, estava tudo alagado. Liguei novamente para o Comandante, solicitando uma viatura.

Fui socorrido por uma de nossas viaturas do tipo camionete e no retorno ao quartel fomos parados por um grupo de pessoas que pedia auxílio para uma mãe com uma criança de 18 dias. Eram evangélicos que estavam participando de um encontro no Parque Vila Germânica, encontro este que também havia sido cancelado. Diante da situação, coloquei a mãe, com a criança nos braços, e mais uma senhora na viatura e partimos para a sua casa. Ele nos informou que morava na Rua José Reuter, no Ristow. O caminho foi longo. O cenário já era preocupante. Muitos alagamentos e deslizamentos pela via davam uma pequena mostra do que viria. A cidade não apenas sangrava, mas em alguns lugares ela já deixava sua carne à mostra. A cidade começava a mostrar suas entranhas, mas eu não percebia, não só eu, acho que até aquele momento ninguém percebia.

Quando chegamos à rua indicada, a senhora pediu-me que a deixasse antes de sua casa, que era em um morro, pois se parássemos em frente, ela não conseguiria sair, já que a viatura era muito alta. Lembro que ela ainda apontou para a sua casa e disse: - é lá que eu moro. Hora mais tarde, aquela região foi uma das mais castigadas da cidade, com a destruição de inúmeras casas pelo deslizamento de terra e muita gente morreu.

Quando cheguei ao quartel, me reuni com o Comandante e adotamos algumas medidas visando proteger o patrimônio. Por volta das 22:00h fomos dispensados. As previsões não apontavam para cheias. Confesso que fiquei feliz em voltar para casa. Fui a pé. As águas já haviam baixado e não encontrei nenhuma área alagada. Era uma trégua diabólica, apenas para transmitir uma falsa sensação de segurança. Uma pausa para o pior.

Blumenau e todo o Vale seriam tomados pelo terror. Silenciosamente a cidade era tomada por forças de proporções catastróficas. A cidade que aprendera a conviver com as seguidas cheias do rio não estava preparado para o que a aguardava. De forma sistemática e cruel, e natureza iria revelar toda a sua ira. A enchente teria companhia. Como que em uma bizarra aventura épica, um monstro com três corpos iria atacar o vale. A população seria acuada, judiada, massacrada. Os morros, que em épocas passadas eram o refúgio para as cheias, haviam se transformado em mortais armadilhas. Deslizamentos iriam tirar a vida de mais de uma centena de aterrorizados moradores do Vale.

Mas não no Domingo durante o dia. Novamente as águas recuaram. Nós voltamos ao quartel, havia sido chamado, novamente às 02:00h, em plena madrugada. Podemos dizer que o Domingo foi ameno durante o dia. Quando a noite se aproximou, nos preparamos para ficar ilhados no prédio do COPOM. Continuamente, as águas foram subindo. Não como nas enchentes que a cidade já havia testemunhado. O volume de água foi demasiado para um solo já castigado e ensopado por quase quatro meses de chuva. A enchente seria precedida de alagamentos. Lugares que tradicionalmente eram atingidos com determinadas cotas do rio, simplesmente ficaram embaixo d’água, independente da cota. Assim, de forma sorrateira, com total vilania, as águas pegaram os moradores de surpresa. É tradição que se adote determinada medida em função das cotas. Esta tradição foi destruída, desmoralizada, não serve mais para nada.

De agora em diante, quem se guiar pelas cotas estará placidamente esperando a morte chegar e não, como no passado, estará em estado de alerta para enfrentar, e vencer como tantas vezes já ocorreu, com a bravura (a bravura que moldou a multicolorida Blumenau) indômita dos orgulhosos blumenauenses, mais uma enchente. Triste ilusão que cega os sofridos bravos!

Com a chegada da noite nos instalamos no COPOM. Os telefones de emergência não paravam, assim com as águas do Ribeirão da Velha, que perigosamente passam e míseros metros dos fundos do aquartelamento. Sem pedir licença, e muito menos encontrar resistências, as águas foram tomando o quartel. Rapidamente uma furiosa lâmina tomou conta de todo o pátio. O Ribeirão da Velha, ardilosamente se apoderou do nosso quartel e lançou um braço que cortou caminho para evitar uma curva que contorna os fundos do mesmo. Agora, tínhamos as águas do Ribeirão, e sua astuta correnteza, nos cercando.

Pelo telefone, a comunidade continuava com seu grito de socorro. À medida que a noite avançava, o desespero aumentava, refletido nos ininterruptos chamados ao telefone 190. A cada telefonema, uma história de horror e desgraça nos alcançava. Pelo rádio, o que os policiais militares, homens e mulheres reportavam não era menos estarrecedor. Desmoronamentos, alagamentos, chuva torrencial e o rio, que fazia valer a sua qualificação de “Açu”, que em Guarani significa grande. O Itajaí-Açu alargava suas margens e engolia a cidade, engolia o vale.

O COPOM se viu envolto em um medonho frenesi. Dividíamos o espaço com os funcionários do SAMU, para alguns deles, a primeira experiência em catástrofes. Rapidamente a situação na cidade se deteriorou e o caos se instalou. Os deslizamentos não paravam. Morte e destruição em cada telefonema. Patrimônios, sonhos e vidas eram levados pelas avalanches de terra. Não demorou muito para que nossas viaturas se vissem sitiadas, suas rotas estavam bloqueadas, idem para as viaturas do SAMU. O socorro não circulava mais. Não chegava e quando chegava não saía. Estávamos vivendo algo inédito. Nunca antes tínhamos enfrentado situação parecida. Era uma guerra contra um inimigo astucioso, mas covarde. Batalhas eclodiam em todos os cantos da cidade na forma de deslizamentos, que produziam baixas e mais baixas entre os moradores. A luta era inglória. O número de vítimas ganhava corpo de forma assustadora.

Começamos a receber toda a carga da fúria da natureza. A cidade era atacada por todos os lados. Uma força descomunal a estava devorando, literalmente. Já não eram mais sinais, era todo o furor em seu esplendor máximo; a cidade estava com suas entranhas expostas. Entranhas famintas, que afloravam para o banquete diabólico. A terra dos morros se liquefazia e descia a encosta levando anos de trabalho duro, de sonhos, de projetos, de patrimônio duramente conquistado, de vidas, vidas e mais vidas. Entre as solicitações de ajuda, uma veio da Rua José Reuter, no Ristow, dando conta de que cerca de quinze casas haviam desmoronado como que em um efeito dominó, em que as pedras do jogo são casas, são vidas. Será que aquela mãe com seu bebê de dezoito dias foram atingidos? Passados dez dias daquela noite, ainda não sei. Falta-me coragem para retornar e saber daquelas pessoas. Acho que prefiro não saber. Uma contabilização macabra foi desenvolvida no COPOM. Tentávamos imaginar a quantidade de mortos, com base nas súplicas, nos pedidos desesperados por socorro que nos chegavam. Isso na Polícia Militar; e no Corpo de Bombeiros? Nem dava para imaginar.

Já havíamos perdido a energia elétrica e usávamos o sistema de suporte para emergência, um conjunto de baterias administradas por um software. Aos poucos este sistema foi falhando. Os computadores apagaram. Fazia horas que estávamos à luz de velas. Apenas o rádio e telefone 190 funcionavam. Não tínhamos mais como fazer os registros. O sistema rádio, que é ligado aos computadores foi perdido junto com eles; conseguíamos operar apenas através de um rádio tipo HT (aqueles rádios que os policias usam na cintura). Todo o sistema de segurança da cidade, ligado à manutenção da ordem pública, dependia de uma mísera bateria de HT, e quando ela acabasse...

Em meio ao caos que assolava a cidade e se refletia em cada policial ilhado naquela sala, um soldado se aproxima de mim e com os olhos arregalados diz: “Major estão morrendo lá fora e não podemos fazer nada!” Simplesmente assenti com a cabeça. No pátio do quartel, aquela lâmina de água agora já tinha mais de um metro de espessura e era varrida por uma forte correnteza. Pensei comigo: se este prédio resistir e não desabar, podemos dizer que temos sorte.

Passados alguns instantes, perdemos o telefone 190. Todo o sistema caiu, e a bateria do HT resistia bravamente. Aos poucos, fomos percebendo o silêncio e como que um alívio tomou conta do ambiente. As más notícias não paravam de chegar, só que agora em menor número, apenas pela comunicação com as viaturas. Fomos informados de que um gasoduto explodira em Gaspar. Qual o tamanho da destruição? Havia mortos? Quantos? Apenas especulações. Aquela noite de terror estava longe de terminar. Pela janela do COPOM podíamos enxergar por detrás dos morros a claridade do incêndio no gasoduto. Diante de nós, uma paisagem diabólica ganhou forma. A claridade do incêndio era como que um pôr do sol, ou uma lua cheia a iluminar a morte e a destruição que se abatia sobre a cidade, que alagada desmoronava sob o seu próprio peso.

Terra, água e fogo estavam juntos, unidos contra os habitantes do vale. Desta forma, a primeira noite foi vencida e chegou o dia. O primeiro de uma seqüência de dias macabros. Dias que mostraram toda a nossa impotência e incompetência diante da fúria grotesca da natureza, que, sem pedir licença, foi devorando o que encontrava pela frente. Dias que mostraram, também, como a nossa arrogância pode potencializar as forças da natureza quando esta simplesmente resolve seguir seu curso normal. Mas, ainda não tínhamos conhecido o verdadeiro drama, o tamanho da tragédia. Era só o começo!

Paulo Roberto Bornhofen
Major da Polícia Militar de Santa Catarina e escritor.
Membro da Academia de Letras Blumenauense,da Academia de Letras de Canelinha e da Sociedade Escritores de Blumenau.