Páginas

Blog literário criado em 29/08/2008, na cidade de Blumenau-SC.


4 de set. de 2008

O facínora de alta periculosidade e elevada idade

Eu tenho um amigo que me consta histórias fascinantes que aconteceram na aldeia dele. Em uma das oportunidades ele me contou de um perigoso facínora, um terrível malfeitor de elevada idade, ou melhor, como este perigoso celerado foi criado, se tornou alguém de alta periculosidade para a toda a aldeia.
O homem enveredou pela vida do crime já idoso, com quase 80 anos, mas foi fundo e terminou preso, enjaulado, segregado da sociedade. Ocorre que não foi o homem que alterou seu comportamento, mas sim o comportamento dele que passou a ser encarado pelo viés criminoso. Ele, o facínora, antes de o ser, passou quase a totalidade da sua vida amarrando a sua vaquinha para pastar em um local público. Esse foi o começo de sua vida criminosa.
Dia após dia, ele calmamente levava seus ruminantes de chifres e os deixava placidamente fazerem aquilo que a natureza exigia deles, ou seja, pastarem. Isso por décadas. Mas o tempo foi passando, a sociedade foi ficando mais complexa e para poder por ordem no caos os habitantes da aldeia foram alterando o seu código de leis. Assim, sempre que um tipo de comportamento começava a incomodar, eles determinavam que o mesmo passasse a ser crime e os criminosos eram punidos. Agindo assim, os aldeões achavam que conseguiriam resolver os seus problemas.
Então, após o tempo surtir seus efeitos em décadas de existência, as coisas complicaram para o lado daquele que viria a se tornar um perigoso criminoso. Alheio aos caprichos da aldeia, a natureza seguia seu curso exigindo que as vaquinhas continuassem a pastar. Como o pasto continuava apetitoso as vaquinhas eram levadas diariamente para o mesmo lugar. Mas, o pasto, mesmo apetitoso, estava em lugar errado. Não, o pasto não se moveu, foi o entorno dele que foi alterado pelo povo da aldeia, de forma que a presença dos chifrudos ruminantes passou a ser um perigo para vida dos integrantes da aldeia, mesmo que eles só pastassem. Um determinado dia, um dos aldeões achou que tinha dar um basta naquela grave quebra da ordem e determinou, em nome da normalidade, que os chifrudos não poderiam mais fazer sua alimentação naquele local, que o dono dos bichos estava proibido de conduzir as vaquinhas até aquele apetitoso e verdejante pasto.
Foi quando as coisas, que já estavam ruins, pioraram para o facínora. Ele simplesmente se recusou a cumprir a determinação, já que por décadas, religiosamente dia após dia ele conduzia seus animais ao mesmo local. Para ele, já com os efeitos do tempo agindo em sua longa existência, ficara difícil acompanhar a velocidade das mudanças no comportamento do povo da aldeia. Na sua forma de raciocinar ele não enxergava o terrível crime, ato vil, pecaminoso, abominável e desprezível, que insistia em reproduzir no seu cotidiano, em uma afronta aos agora sagrados códigos de conduta.
O vilão-mor foi conduzido para dar explicações. Na tentativa de justificar suas atitudes, e sem dominar o linguajar adequado, foi dado com o perigoso encrenqueiro e lhe atribuíram mais um crime. Coitado, não sabia que falar de forma inadequada tinha sido transformado em crime, e agora passara a ser um criminoso freqüente, um delinqüente de vários crimes. Para alguns ele era apenas birrento, alguém que as duras décadas de existência não permitiram se aperfeiçoar no trato com os demais aldeões. Mas, para outros, não. O seu comportamento era algo inadmissível, perigoso para o convívio com aldeões distintos, os considerados decentes. E ele foi encarcerado, segregado da aldeia. Foi entregue para cumprir sua pena longe do todos. Mas lá, ele conseguiu algumas regalias, coisas que a idade avançada ainda permitia, de modo que apenas passava a noite lá e durante o dia ele podia cuidar de sua companheira de longa data, e também das vaquinhas, que agora estavam em outro lugar, alheias a tudo saboreando outro pasto verdinho.
Até que um dia ele abusou da bondade do aparelho segregador, em determinada noite ele não voltou. Ficou cuidando da sua companheira, que estava adoecida. Novamente ele percorreu o caminho indevido e afrontou o sistema montado pelos aldeões para cuidar de gente como ele. Sendo assim, o sistema que foi criado para segregar os perigosos dos demais aldeões não podia permitir tal assanhamento, tamanha petulância, e ele perdeu toda e qualquer regalia, seus benefícios foram cortados, ele deu adeus aos privilégios, afinal regalia é prerrogativa apenas de quem merece. Assim nosso facínora, do alto de sua periculosidade angariada em quase oito décadas de existência passou a compartilhar sua companhia com gente tão perigosa quanto ele, homicidas, traficantes, ladrões e outros. A sociedade finalmente estava protegida de tamanho risco. Poderia agora retornar a sua calma. Lá, disse o meu amigo, referindo-se a aldeia dele, eles chamam isso de justiça. É?

Paulo Roberto Bornhofen
Escritor e poeta

0 comentários: