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Blog literário criado em 29/08/2008, na cidade de Blumenau-SC.


1 de set. de 2008

Candonga – histórias para não serem contadas

Que a vida é feita de surpresas não é novidade para ninguém. Mas, certas situações devem ser esquecidas, pois a surpresa transcende o nosso entendimento. Certa ocasião fiz parte de um grupo de estudos que se deslocou para a localidade de Candonga, no município do Morretes, litoral do Paraná. Uma comunidade bastante gentil que nos recebeu fidalgamente e cujas pessoas só nos deixaram boas lembranças.

Ocorre que em um desses desatinos do destino que provoca um desencadeamento de eventos mórbidos, nossa visita quase fica marcada pela tragédia. De minha parte, tenho uma propensão para problemas digestivos já tendo algumas passagens por hospitais. Um assunto verdadeiramente terrível de ser tratado, não tanto quanto a ser vivido, mas de toda forma deplorável.

Em uma espécie de “van premiere” participamos, no dia anterior, de um almoço, muito bem servido por sinal – faço alusão ao almoço apenas para esclarecer que foi isso que provocou toda a série de eventos, que por infelicidade tiveram a comunidade de Candonga como arena.

Nosso deslocamento até a comunidade foi em um microônibus com direito a todas as sandices que só aos alunos é permitido, principalmente quando os professores estão ausentes. E olhe que éramos alunos de mestrado.

Chegando a comunidade fomos muito bem recebidos, saboreamos um almoço divinamente preparado com produtos orgânicos, bem ao estilo “natureba”.

Antes de dar prosseguimento, cabe aqui uma ressalva. Eu não faço o estilo “homem-interagindo-com-a-natureza”. Ao contrário, sou bem urbano. Dessa forma a simples expectativa de passar um fim de semana no meio do mato, convivendo com a vida silvestre, ou não silvestre, era algo que não me atraia. Tentei convencer alguns colegas para irmos de carro para que assim pudéssemos dormir em Curitiba, mas foi em vão. Tudo conspirava contra mim, e era só o começo. O mal estava começando a ganhar forma, o perverso estava sendo gerido e logo mostraria toda a sua força.

Na tentativa, inútil, de tornar a minha incursão ao desconhecido o mais próximo possível de minha alegre e confortável vida urbana, tomei alguns precauções, do tipo, levar um bom sortimento de material de higiene pessoal, alguns medicamentos estrategicamente escolhidos, meu secador de cabelos e um item de extrema importância, um surrado – e por isso mesmo acolhedor – pijamas, que como a maioria dos meus pijamas, era de seda. O fiz livre de qualquer maldade, mas paguei elevado preço por tamanha ousadia. Minhas colegas, sempre a ala feminina, descobriram e logo virei motivo de brincadeiras. O mal começa a ganhar músculos, mas ainda se mantinha adormecido. Em uma incursão rápida pelos cômodos notei que no banheiro faltava um singelo espelho, para que eu pudesse fazer a minha barba, aquela de todos os dias. Mais uma vez inocentemente cai em desgraça. Tive a insensatez de registrar, mesmo que de forma sutil, minha decepção com a ausência de tão simples, mas importante instrumento das lides diárias com a higiene. Novamente estava eu no centro das atenções. O mal espreitava, não mostrava suas garras ainda, mas dava indicativos de que estava presente e logo cobraria seu quinhão.

Após o almoço uma das colegas começou a sentir certo desconforto, que rapidamente progrediu para um estado de completo mal estar que se fazia acompanhar por dores. A seguir outro colega foi acometido do mesmo problema. Agora o mal já não se escondia, agia ostensivamente, mas não amplamente. Havia apenas eleito alguns e guardava sua plenitude para mais tarde. A apoteose ainda estava por vir. Assim seguimos pelo dia e a noite se apresentou. Um jantar, tão bom quanto foi o almoço, nos esperava. Após saborearmos os alimentos que pudemos sentir foram preparados tendo como ingrediente especial o amor e o carinho, no dirigimos para um local conhecido como espaço xamânico, obviamente numa alusão aos seres não-corporeos da floresta.

Rapidamente uma fogueira foi providenciada e demos inicio a uma roda de histórias fantásticas, recheadas de muita mentira, obviamente. Era o momento certo, tenho convicção de que era isso que o mal havia esperado durante todo o dia. Algo começou a se manifestar em mim. Uma sensação que começou quase despercebida e rapidamente foi tomando volume, me jogando em um ambiente que mistura o real e o fantástico, o extraordinário, sendo impossível separar um do outro. Como os demais colegas estavam se divertindo, resolvi deitar-me em um banco e não exteriorizar o que estava me acometendo. Os sinais eram claros de que algo terrível estava para acontecer, era apenas uma questão de tempo. Uma terrível dor aflorou, e eu desejava do fundo de minha alma que fosse algo passageiro, mas eu sabia que não era. Lá pelas tantas o grupo resolveu se recolher e fomos para os alojamentos. Ao tentar usar o banheiro fui tomado por forte pavor: parada na parede estava um representante dos aracnídeos, terrível aranha, que a minha ignorância classificava como da espécie das armadeiras. Mais tarde um colega confirmou que eu estava certo, e com uma série de golpes certeiros reduziu o terrível animal à condição de meros restos mortais, o mal sutilmente mostrava suas garras.

Tive tempo para um banho e pude fazer uso de meu secador. Após, procurei em meus pertences um medicamento e fiz uso dele na esperança de que o mesmo me garantisse uma noite tranqüila. Estava redondamente enganado. Nem tive tempo de cerrar os olhos e minha agonizante noite de reinado teve inicio. Não sei ao certo quantas vezes visitei o trono, mas foram muitas e dolorosamente desagradáveis.
Pela manhã tive a confirmação de que mais uma colega tinha sido vitima. Agora éramos quatro. Ignorava a realidade dos demais, mas eu começa a entrar em um estado de pré-agonia. Meu corpo, mais precisamente minhas entranhas, era palco de uma feroz batalha entre as forças do mal e as do bem, com larga vantagem para o mal, obviamente. Constantemente eu era acometida das mais estranhas e variadas sensações. Estava já em estado avançado de debilidade física. Meu psicológico, até agora preservado, era fortemente fustigado. Sim, meu moral estava abalado, pelo menos o que sobrara dele. Alguns colegas se solidarizavam comigo, outros solenemente me ignoravam. Meses mais tarde fiquei sabendo de que achavam que eu estava com “manhas”, tal qual um bebê chorão que perde o bico e clama pela mãe protetora. Não guardo mágoas, pois sei que não agiram guiados pela fraqueza das intenções. Mas, com certeza o mal, indiretamente, agia através deles para me fustigar mais ainda.

Diante da terrível situação foi sugerido que abortássemos nossa pesquisa de campo e retornássemos o mais rapidamente para Blumenau. Em um desses lampejos terrivelmente extraordinários do destino, foi delegada a mim, por meus colegas, a tomada de decisão. Mesmo acometido de terrível provação, busquei no meu intimo o que me sobrava, não de forças, mas de lucidez e assumi a responsabilidade decretando o fim da empreitada. Mas não era o fim do tormento. Tínhamos todo o caminho de volta por fazer.

Um dos momentos mais terríveis de minha existência se aproximava. Sentado, ou melhor, jogado em um banco de microônibus. Não me é confortável confessar que meu refrescante banho matinal foi vergonhosamente negligenciado, o da noite teria que me garantir. Com a barba por fazer. Usando um abrigo esportivo, algo quase impensável para mim, uma camiseta que insistia em subir pela minha inchada barriga. Na classificação de uma colega, forçando um estilo “baby look”, deixando a mostra às marcas do elástico, produzidas pelo agasalho, e um umbigo sobressaltado pela pressão interna do abdômen. Assolado por extraordinárias cólicas, tentava, nos raros momentos de lucidez me recompor, mas sem sucesso. Sentia pena de mim mesmo, ali reduzido ao máximo da incompetência que se fazia sentir não apenas na estética, mas acima de tudo na capacidade de reação. Estava atingindo um estado perigoso de esgotamento físico. Agora sim, o mal se banqueteava como em um festim diabólico, digno de um Hitchcock. Seu reinado era quase absoluto, seu triunfo estava perto, mas teria que retroceder, afinal de contas o bem sempre vence, e comigo não seria diferente. E, eu desejava isso.

Para minha alegria fizemos uma parada em um hospital, onde por cerca de uma hora e meia recebi medicação intravenosa, o que aliviou meu sofrimento e pela primeira vez vislumbrei que o mal estava perdendo forças, eu poderia e iria vencer mais esta batalha. Tempos depois fiquei sabendo que durante o meu trajeto de volta fui brindando meus colegas com terríveis gemidos. Com toda a certeza era o complemento para o quadro fantasmagórico em que me transformara. Espero que meus colegas tenham entendido que os sons por mim produzidos eram involuntários e na verdade era o eco de terrível batalha que se desenrolava tendo como palco o interior de meu frágil e debilitado corpo. Não era uma simples batalha, pois sentia como se as forças do mal que estavam adormecidas desde o primórdio dos tempos, haviam decidido que era hora de se libertarem. Assim sendo, o fariam através do meu frágil corpo, ceifando a minha existência se isso se fizesse necessário.

Por muito tempo tentei escrever algo que pudesse refletir de forma fidedigna o que se passou naquele terrível fim de semana. Nunca tinha conseguido, me faltavam palavras e a capacidade de raciocínio fugia velozmente. As lembranças boas eram logo suplantadas pelo terror. Só agora consegui romper esse trauma e para tanto tive a ajuda de duas colegas. Elas, vendo que eu não conseguia me libertar das amarras terríveis que ainda prendiam o meu intelecto, me sugeriram que eu tentasse escrever sobre aquilo que me incomodava. É algo meio maluco, mas surpreendemente funcionou.

Confesso que tentei, mas fui incapaz, me senti verdadeiramente incompetente para reproduzir fidedignamente tudo aquilo por que passei. Penso que para poupar, aqueles que desse texto se apropriarem, das terríveis experiências que naquele curto espaço de tempo vivenciei, não fui capaz de narrar a verdade dos fatos. Somente de forma sutil e superficial consegui digitar essas linhas.

Enquanto me dedicava à produção desse singelo texto, senti que não estava só. As terríveis lembranças daqueles momentos irão me acompanhar durante todo o resto da minha existência. O mal foi vencido, mesmo que momentaneamente, mas deixou marcas profundas que o tempo não será capaz de ceifar.
Esse texto foi elaborado sob o forte impacto de terríveis lembranças que eu nem imaginava sequer ter vivido e acima de tudo de ser capaz de sobreviver a elas. Tive inúmeras motivações para não termina-lo e só o fiz em homenagem aos meus colegas que assim como eu foram, viram, sentiram, sofreram e sobreviveram. A eles rendo minhas homenagens.

Paulo Roberto Bornhofen
Escritor e Poeta
2007

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